resenha de Caio Augusto Leite sobre “lâminas”

Resenha cheia de afeto e poesia do Caio Augusto Leite para a revista “Ruído Manifesto” sobre o “lâminas” (martelo casa editorial, 2020). Ele tem a coluna mensal “As armas secretas”.

Trecho:

Lâmina na retina

A poesia, quando atravessa a língua, transforma a palavra em lâminas. Assim é a poesia de Dheyne de Souza em seu Lâminas (2020, Martelo). Quando lemos seus versos, sentimos que as palavras ali estão afiadas e, se tocamos desprevenidos sua forma, nos cortamos um pouco. E é preciso que nos cortemos. Diferentemente da linguagem do cotidiano, referencial e objetiva, a linguagem neste livro está – em diversos momentos – interessada em dar a ver os mecanismos que compõem a linguagem poética. Dessa maneira, tal poesia não busca contar uma história, ou transmitir uma mensagem de modo convencional, mas aposta na criação das imagens para provocar sentidos, por isso lâminas no plural, pois poemas assim não podem se abrigar na univocidade do sentido. São significados e sentimentos vários os que se produzem quando lemos versos como:

coração nublado

abre as cortinas

essas veias

tempestam

A partir da concisão de elementos e da justaposição de adjetivos incomuns, os versos acima abrem na língua caminhos que podem ser percorridos a fim de se chegar a interpretações, mesmo que nenhuma delas seja a correta ou a definitiva. O jogo poético é o da aproximação com essas pontas afiadas, abrindo as pétalas dessas flores de metal. Se num primeiro momento há o incômodo de não estar em contato com palavras que digam imediatamente o que transmitem, a persistência do olhar sobre tais versos faz com que o estranhamento possa aos poucos se desfazer, não de todo, mas o suficiente para que reconheçamos linhas e contornos que formam desenhos reconhecíveis. O trecho do poema a seguir tematiza muito bem esse gesto da poeta:

tem um lado do lago que esconde a língua

das margens que nomeiam as entranhas,

foz em que dormem os pequenos medos,

com suas nadadeiras arredias

[…]

Percebemos nos versos acima que a palavra é posta como algo que não se dá a ver de imediato. Há signos que corroboram tal ocultamento, como “esconde” e “entranhas”; assim, o próprio poema assume sua não referencialidade, sua não objetividade. Na imagem do lago, é no que está no interior dele (na foz) que a poesia está empenhada em atingir. O poema pede, portanto, que o olhar do leitor não se restrinja à superfície imediata das palavras, mas que a partir da sugestão imagética reconheça outras mensagens entranhadas em termos que num primeiro momento remetem a uma materialidade apenas física, como em “língua”, “lago”, “entranhas” “nadadeiras”.

Tal ambiguidade se torna mais perceptível no poema “boletim”, como nota-se nos versos:

na aridez dos dias

dorme

sob lençóis úmidos

um olho trêmulo

outro lúcido

o poema

[…]

A resenha completa está aqui: Lâmina na retina – Por Caio Augusto Leite

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